18 junho 2007

O S. JOÃO DO SÔ REIS

O S. JOÃO DO SÔ REIS
(A NOSSA GENTE)
CONTO
Dedicado à Mafalda e ao Neca

 

 

Toda a miudagem conhecia o Reis Livreiro. O dono daquela livraria de portas azuis, situada na Rua do Paço, que costumava ter peixes vermelhos num aquário redondo. Mas o que o tornava mais conhecido era sem dúvida, a sua cascata de S. João. Os moinhos e a roda com os ciclistas a trabalharem a água, o homem a subir ao bacalhau etc., etc.

 

NECA E MAFALDA

Segundo se falava, este ano ia ser d’arromba. Sô Reis tinha mesmo dito que desta vez, havia de pôr a cachopada toda tola. A rua já se encontrava ornamentada, com bandeiras de muitas nações, que seu irmão marinheiro tinha trazido dos navios. Sô Reis conhecia-as todas.

- Sabes de que nação é aquela toda vermelha com a cruz branca?

- Não!... Sô Reis.

- É da Suiça. Daquele país aonde há neve todo ano e onde se fazem os relógios.

- Ah!...

- E aquela toda branca com uma roda vermelha?

- Também não sei.

- Essa é do Japão. O Japão que fica na Ásia.

-Ena!.... Sô Reis conhecia uma por uma. Geografia era com ele....puxa!

- E que tal!... Tá bem ou quê?

- Está bonito Sô Reis.

- Pronto. Amanhã já sabem é preciso vir logo de manhã para ajudar a trazer as palmas e ir à serração ao serrim para a cascata.

- A que horas Sô Reis?

- De manhã cedo, não é preciso horas marcadas.

- Conte comigo, logo que possa vir, eu venho.

Ao romper do dia já se ouvia pregar tábuas. Não podia ser outra pessoa senão o Sô Reis. Não descansei enquanto não pude dar uma saltada á rua e certificar-me do que se estava a passar. Nessa manhã só queria fazer recados e de cada vez que prestava os meus serviços lá ficava cinco minutos ao redor da cascata. Agora sim ia-se dar a inauguração oficial da cascata. Sô Reis vestia a sua balalaica e trazia na mão três foguetes de quinze tostões. Chegou-lhes o lume e lançou-os ao céu aonde deram cinco tiros cada um. De seguida distribuiu as bandejas aos putos que começaram o peditório. Uma marcha era tocada no banjo pelo Sô Reis Livreiro assentado no passeio do Colégio do Carmo, como só ele sabia tocar. Todo o transeunte que entrava na rua era cravado.


- Dê-me xinco tistões p'ró S.João do Sô Reis!

- Não tenho trocado.

- Eu vou à livraria e distroco.Ninguém podia escapar.

- Sô Reis!... Os Papeiros vêm p’rá qui pedir e não deitam ali o dinheiro.

- Corram com esses gajos. Que vão pedir para a porta deles.

Quando se juntava um número de pessoas a apreciar a cascata, Sô Reis tinha vaidade em pôr aquilo tudo a funcionar e fazer os seus comentários.

- Ó rapaz, liga lá a água para estes senhores verem isto a trabalhar.

- Então, toca a pôr a bola de pingue-pongue a subir no repuxo.

- Dou-lhe os parabéns, é a melhor cascata qu’eu já vi em toda a minha vida.

Toda a gente desde miúdo a graúdo elogiava. As mães viam-se aflitas para arrancar seus filhos para casa. Miúdo fazia birra e puxava a mãe pelo braço pois queria ver melhor.

À noite vai haver tourada. Vai ser bestial. Estava ansioso que chegasse a lua. E nós que nunca tínhamos visto uma tourada. De tarde o cavalo e a vaca feitos em papelão cheios de bombas foram colocados na rua para todos verem. Alguns miúdos ousaram mesmo pegar neles e demonstrar os seus dotes tauromáquicos.

A noite caiu. Gente de todos os lados da cidade acorria ao Largo para ver a tourada. Os corpos compactos formavam um círculo. Esse vazio era a arena. Gregório corneteiro da Segunda Grande Guerra dava as entradas num clarim desafinado e ferrugento. De casa de Sô João saem os forcados e os toureiros fardados a rigor. Outro toque na corneta e entra o cavalo e a vaca. Palmas de todos os lados.

A vaca investia e o toureiro fazia a "xicoelina".

- Olé!... Olé!... Gritava a multidão.

Agora é que vai ser porreiro, tocou para a pega, que foi feita com valentia embora alguns forcados tivessem caído.

Risos e palmas com olés à mistura. Depois desta demonstração de pura tauromaquia chegou-se o lume à vaca e ao cavalo. A arena desfez-se. As bombas arrebentavam de todos os lados e o pessoal assustado, fugia. Os miúdos riam, ao mesmo tempo que seus olhitos guardavam estas imagens na retina. Durante algum tempo ainda falavam e descreviam à sua maneira as imagens que lhe ficaram na memória.

em casa Ricardo contava como foi. Tio Bino que gostava de o ouvir puxava por ele:

- Já não me lembro bem como foi!

Então Ricardo pegava num banco da cozinha, enfiava-o pela cabeça e segurava-o pelas pernas com as mãos.

- Foi assim, quer ver?

- Anda lá!

- Lá vai a vaca...fujam...fujam...

-Lá vai a vaca e o Pernacurta....

Dando uma volta à mesa da cozinha.

O Coelho, a Zeza e a tia Zinda mijavam-se a rir enquanto Tio Bino ajudava Ricardo a tirar o banco pela cabeça.

- Foi mesmo assim!... Agora já me estou a lembrar.

- Hei-de falar ao senhor Reis. Para o ano quem vai com a vaca és tu.

- A sério, Ti Bino?

- A sério....

 

Fernando Oliveira - Furriel de Junho



06 junho 2007

O CARNEIRINHO

O CARNEIRINHO
(A Nossa Gente)Se há festa genuinamente penafidelense é sem sombra de dúvidas a do Carneirinho.

Na véspera da Festa do Corpo de Deus é costume, os alunos das escolas primárias e ultimamente da pré-primária e até dos infantários oferecerem um carneiro aos seus professores ou educadores. Tudo começou, quando em 1880, os alunos da casa escolar do Sr. Henrique de Carvalho, da rua Cimo de Vila hoje Rua Alfredo Pereira, resolverem brindar o seu professor com um carneiro e de modo vistoso. Reuniram-se para os lados do Calvário, e dali conduziram o carneiro para casa do professor, indo na frente montado num jerico um aluno tocando corneta, e o carneirinho muito enfeitado entre duas alas de alunos vestidos a capricho. Todos acharam muita graça à ideia, e a partir daqui, deu-se início ao que hoje chamamos o Carneirinho.

No meu tempo de escola, em que o ensino era feito à base de palmatoadas, canadas e reguadas, mesmo assim, não deixávamos de ofertar o nosso carneiro ao professor num reconhecimento do seu trabalho. Então aproveitávamos este desfile, não só para dar vivas ao nosso professor, como gritávamos a plenos pulmões um “morra à palmatória”, mas pelos vistos, ninguém ouvia o nosso apelo.

Hoje, a escola felizmente já não utiliza estes métodos, e os poetas populares por vezes também dão um jeito ao cortejo do carneirinho. A contradizer o que atrás foi dito, uns alunos transportavam um cartaz com a quadra: Nosso carneirinho é lindo / Mas mais linda é a professora / Dá-nos ensino e carinho / É uma grande senhora ou um outro grupo de alunos que ia desfilar pela última vez, traziam um cartaz aonde se podia ler: À festa do carneirinho / Desta bonita cidade / já não vimos para o ano / Vamos ter muitas saudades.

Este ano, um dos elementos do desfile, transportava um cartaz com a foto da pequena Madeleine raptada na Praia da Luz no Algarve há 35 dias, como prova de solidariedade na dor daquela família, como também que a dizer ao mundo, que estes crimes não se podem esquecer mesmo em tempo de festas.

No dia do desfile do carneirinho, as avenidas por onde o cortejo vai passar, ficam apinhadas de gente para verem e fotografarem os seus filhos. O cortejo é aberto com bombos, e demora seguramente duas horas a desfilar. Depois é o entregar do carneiro ao professor e receber deste algumas guloseimas acompanhadas de alguns sumos.

É por entre tamanha algazarra, brincadeira e muita cor, que miúdos e carneiros dão início às Festas da Cidade e Concelho de Penafiel, também chamadas de Corpo de Deus.